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A área VIP e o mito do vencedor

O Gosto pelo mal gosto ! Uma área VIP que só na imaginação nos protege dos monstros que ajudamos a criar e alimentar na base d...



O Gosto pelo mal gosto !


Uma área VIP que só na imaginação nos protege dos monstros que ajudamos a criar e alimentar na base do clique, da miséria e do mito do vencedor.



“Estou há 40 anos sem fazer sexo, diz Mama Bruschetta”. “Miss Bumbum 2013: Confira as Finalistas”. “Bieber visitou baladas e casas de massagem”. “Pegadinha do enforcado causa polêmica”. “Chris Fernandes perde óculos em mergulho”. “Mulher Filé mostra demais com saia curta e rasgada”. “Bruna Marquezine mostra novo visual”. “Vitamina C, miojo e cueca: os pedidos dos artistas do Planeta Terra”. “Lady Gaga vai a premiação nos EUA com dentadura bizarra”. “Namorada de Roberto Justus faz pose em fotos na piscina; veja”. “Vote no duelo das mães saradas”. “Sinto falta de Seu Madruga, diz atriz que faz Chiquinha em Chaves”.
Na segunda-feira 4, estas eram algumas das chamadas de três dos principais portais de notícias (repito: notícias) do País. Pela lógica entre produção e consumo, imagina-se que o grosso da audiência não esteja em qualquer biblioteca, centro cultural, diário oficial da União, portais de transparência ou página dedicada a fãs de Dostoiévski.
Não dá para saber quem nasceu primeiro na internet: clica-se muito porque o conteúdo é cruel ou o conteúdo é cruel porque clica-se muito? Tampouco dá para saber o que move o clique: se a patologia humana ou se a simples curiosidade mórbida de quem nada quer da vida a não ser acalmar o próprio espírito: “sou um fracasso, mas ao menos somos muitos”.
Para quem entra e sai da vida sem deixar uma linha para a posteridade, não deve haver exercício mais excitante do que observar a celulite da musa, a gafe da socialite, os erros de português da loira do Tchan, o barraco público-privado da atriz da novela ou a falência, moral e física, do bilionário excêntrico.
Dá gosto saber que a idiotice é um patrimônio da humanidade, mas dói saber que fazemos parte disso.
Por isso precisamos, de tempos e tempos, salvar nossa dignidade desancando a indignidade alheia. É o que possibilita ao mesmo portal escrever em destaque nobre: “Rei do Camarote vira meme na internet; entenda”. É um fenômeno dentro do fenômeno: o meme, nascido e alimentado na internet, repercute e vira tema de repercussão na própria internet, em um exercício elástico de metalinguagem com direito ao “entenda” para as almas menos favorecidas (explicar o sistema de partilha do pré-sal não deve ser mais desafiador).
O alvo da vez é um sujeito de 39 anos que se gaba de gastar cinco mil reais por noite em uma balada. Como ele, existem muitos. Mas poucos teriam a petulância ingênua de gravar em dez minutos a confissão da própria inutilidade: pra ir para a balada é preciso se vestir com as melhores roupas das melhores grifes; tem que ter um carro potente, um carro que chama atenção, que toda mulher gosta; na pista, você é mais um, na área VIP, você ganha evidência; eu pago para as pessoas servirem os meus convidados; vou pra balada com meus seguranças para garantir a minha integridade física; as pessoas têm inveja de mim, preciso ter cuidado com a minha vida e meus bens; as pessoas conhecidas, da mídia, quando frequentam o seu camarote, agregam; camarote tem que ter mulheres, se não, é como comprar um Boing e ter um piloto de teco-teco para pilotar; quem tá no camarote tem que ter o Instagram; aqui posso gastar até o infinito.
O tom de deboche torna custoso imaginar que a pessoa é real. Como foi custoso – e prazeroso – saber que alguém como o conde Chiquinho Scarpa atingia por nós o auge da estupidez humana ao enterrar no quintal de casa o carro de luxo pelo qual sofria ao se desgarrar. Nós, que não temos quintais nem carros de luxo para lamentar, passamos horas, dias inteiros a debater a futilidade do ato, como se ela fosse inédita, para cravar posição: sabemos que somos melhores do que isso, e isso nos revigora. Mas qual não foi a surpresa quando o mesmo Chiquinho Scarpa levantou o automóvel dos mortos para ressuscitar a velha pegadinha do Malandro: tratava-se de uma campanha de incentivo a doações de órgãos – que, como um automóvel enterrado, não têm qualquer utilidade quando seguem para debaixo da terra com tantas pessoas esperando um transplante. Pode não ter sido a mais brilhante das mensagens, mas poucos souberam usar tão bem a nossa própria hostilidade para virar assunto e, a partir deste assunto, engordar uma campanha que passaria batida em condições normais de pressão e temperatura. Isso é marketing em estado bruto, para o bem ou para o mal.
Essa mesma curiosidade mórbida ao que é vil transformou o pobre menino rico do camarote na origem dos males do Brasil quando na verdade ele é um sintoma desses males: a origem está ao seu redor, a começar pela retroalimentação do lixo caça-clique, passando pela ideia de que na vida o que importa é se diferenciar na simples multidão - como se a mega noite de sábado o livrasse do tédio ordinário das tardes de domingo.
No vídeo, o pobre menino rico se pergunta: quem não queria estar no meu lugar? “Não queremos”, disse o país inteiro que se pôs a rir do personagem. Se ele de fato existir, ele é o resultado mais ingênuo – porque se deixou flagrar – de uma multidão em nossa volta a enfiar o dedo nas nossas caras e dizer o tempo todo que é preciso ser assim e assado: é preciso ser diferenciado, é preciso ter bom gosto, é preciso ter requinte, é preciso tirar fotos nos pontos turisticos, é preciso mostrar a todos o quanto estamos dispostos a gastar nas nossas casas, nas nossas festas, nas festas de nossos filhos, nos motores de nossos carros. Que é preciso, enfim, comprar de tudo o que não é necessário para alimentar a alma e adentrar em bolhas de ar rarefeito recheadas de afetação.
Atire a primeira pedra no pobre-menino-rico quem não se encantou com um comercial recente de automóvel a mostrar um garoto ganhando uma “peça” do carro cada vez que passava de ano, tirava boas notas na escola ou, já adulto, conseguia um bom trabalho. O último componente, obtido em uma concessionária, é acompanhado de uma mensagem edificante: "porque esta conquista vem de longe".
O pobre-menino-rico é o bobo do lado de lá da tevê que acreditou na conversa. Mal sabe ele que não há conquista maior do que o cansaço físico de uma pedalada ou uma caminhada sem direção, do riso não abafado no boteco ao fim do trabalho, das alegrias dos encontros fortuitos, dos abraços gratuitos, de um e-mail não esperado, e de tudo o que a gente ganha sem precisar pagar por nada. Mas isso é para os comuns, e os comuns não rendem cliques. Para ganhar clique, é preciso levantar as asas das subcelebridades, abatê-las em voo e faturar com seus destroços.
A dor da gente não sai no jornal, dizia a música de Chico Buarque. Na internet, ela é escancarada até o limite do grotesco para atrair os urubus. Malhar o pobre menino-rico, cujo único status - o de cachorro-morto - é desconhecido por ele mesmo, não é outro ato se não cercar com cordão sanitário a nossa área VIP imaginária. Uma área VIP que só na imaginação nos protege dos monstros que ajudamos a criar e alimentar na base do clique, da miséria e do mito do vencedor.

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O Pensador


O talento do historiador consiste em compor um conjunto verdadeiro com elementos que são verdadeiros apenas pela metade.

- Renan , Ernest

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